sexta-feira, 6 de abril de 2018

Resistência é nosso sobrenome! Sou mulher negra do Partido dos Trabalhadores.

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                                                        Porto Alegre, 06 de abril de 2018.

                  Volto a ser oficialmente uma filiada ao Partido dos Trabalhadores no mesmo dia em que o homem mais importante da história dessa organização política seria injustamente levado ao cárcere. Seria . Lula não se entregou! Nós não nos entregaremos. 
                Lula assinou a minha primeira ficha de filiação, em 1992, através das mãos da minha referência , a companheira e hoje irmã Lanna Campos.  Minha filiação formal foi extinta no último recadastramento dos filiados do PT . A burocracia e as vicissitudes da vida me deixaram afastada da organicidade do Partido por vários anos. 
                Mas a luta também é feita no cotidiano das nossas ações e jamais abandonei os compromissos do meu projeto mítico social, ou seja de lutar por justiça e equidade em todas as formas de viver em sociedade tida como democrática. Na minha tradição, todos são responsáveis uns pelos outros e o poder circula na medida da necessidade da comunidade e do tempo enquanto disponibilidade e compromisso com a Força Vital da Comunidade, que conecta uns aos outros, independente do lugar que ocupa no instituído da sociedade ocidental.
                Como ativista social nossa militância inicia no momento que vemos a luz do sol e nos desprendemos do cordão umbilical, pois toda criança que nasce negra, neste País, já traz no seu DNA a marca dos enfrentamentos que a sociedade lhe impôs, impõe e imporá, enquanto houver resquícios de colonialismo perverso que fundou a sociedade patriarcal, racista, machista e, criminalmente, intolerante.
                E é esse fio condutor que faz dedicar-me  à luta contra intolerância religiosa de forma matricentrada sem grandes alardes junto ao Partido, porém jamais abandonei o sonho de  um mundo onde fosse possível  erradicar a miséria, a fome e o analfabetismo social e político. Vi um arremedo desse sonho sendo realizado com Lula e Dilma. Arremedo sim,  porque o racismo que estrutura esse país, não permite que a maioria da população acredite que é possível transformar a realidade perversa do “pacto narcisista da branquitude” ( Ver Maria Aparecida Bento).
 .         Evidente que farei formação político partidária e farei com muito orgulho e critica, pois somos a resistência e a amorosidade radical. Queremos Lula livre e a todos e a todas nós. Queremos todos e todas livres do açoite.
             Durante estes últimos anos, fiz ,(e continuarei fazendo enquanto se fizer necessário) críticas internas referentes a baixa representatividade das mulheres e dos negros no PT , aliás observa-se isso em todos os partidos de esquerda, direita e centro, mas essa é outra conversa que farei quando os ouvidos quiserem escutar.
            Tenho um posicionamento, quase visceral, em relação ao impedimento da primeira mulher presidenta eleita e sinto que a misoginia atingiu de forma irracional e violenta a  Dilma Roussef , expondo-a a uma crucificação moderna em que “Pilatos” lavou as mãos (entendam como quiserem, mas estou expondo minha sensopercepção a um fato) de forma constrangedora como um exemplo da insuficiência das instituições políticas em preservar e promover as lideranças femininas, fato que tem se configurado especialmente com as mulheres negras, vide Matilde Ribeiro, Benedita da Silva, Ernestina Pereira. Para nós mulheres negras a divisão dos delicados nunca foi minimamente complacente com a nossa necessidade: entre direita, centro ou esquerda somos pretas e não servimos para ocupar os bancos privilegiados do trem que conduz os sonhos de vivenciar novas possibilidades .
                Mas enfim, sou servidora pública e ,por vezes, assumi tarefas que o movimento social me confiou na luta por direitos, independente do partido que ocupava o espaço do executivo, bem como enquanto servidora cumpro com o lugar instituído de estar a serviço do público. Respeito a decisão da maioria da população, pois acredito que o poder emana do povo. A filiação no partido político não foi o fator preponderante para cumprir meu compromisso com a luta.

               Contudo, ontem eu chorei. Senti raiva, indignação, desesperança, Recusei-me a olhar o noticiário e calei-me. Meu peito doía. Fui a uma audiência  e ouvi da promotora o termo que doeu nos meus ouvidos e na minha alma de ativista em direitos humanos, ela disse: “minha experiência me leva a ter convicções”. Saimos de lá impactadas. mas a vida segue. Ao chegar em Porto Alegre, por volta das 18h30min resolvi assistir o lançamento da 11ª Bienal Mercosul, às 19horas, na Praça da Alfandega, ao ar livre. Entrada gratuita.. E vi, ouvi e cantei a canção das mulheres. Das mulheres negras: da Glau Barros, da Nina Fola, da Anaadi, da Camila Falcão. Assisti todo espetáculo na companhia de duas mulheres negras que amo muito, em meio a uma platéia majoritariamente branca. Minha alma viajou no sonho de ter uma outra plateia, uma platéia mais representativa ao que o espetáculo se propunha.  E lembrei: isso reflete o cenário político que está colocado para a democracia brasileira.  Os negros e negras não estão neste espaço porque este espaço, mesmo  à disposição do público, não lhes é politicamente acessível.

                Nesse momento em que constatei nos olhares, nas posturas, na composição do todo daquele lugar tão lindo, tão rigorosamente cuidado para que todos se sentissem confortáveis, eu senti um desconforto . E decidi que estava na hora de ir-me. E assim fiz.   
              
               Ao chegar em casa minha filha disse: o Moro decretou a prisão de Lula. Estou muito triste porque isso é um atentado contra a democracia .

               Não, Filha! O atentado contra a democracia ocorreu quando 54 milhões de votos foram ultrajados e desrespeitados. O impedimento de Dilma Roussef forneceu o açoite que hoje leva à condenação de Lula. É esse açoite  ao estado democrático fere ainda mais a alma do povo brasileiro constituído na sua maioria de mulheres negras.

                É um açoite que exige resposta e medidas urgentes e contundentes.

               Tarefas importantes se avizinham. Tarefas radicalmente amorosas e resistentes.. Tarefas que sejam refeitas e gerenciadas com a potência criativa de todos e todas que acreditam na aliança das nossas diferenças para enfrentar o açoite. Entre elas, a necessidade de enfrentar a intolerância, o racismo, o classismo e o sexismo, com a assertividade e a coragem da ação política de mulheres negras.

                A fala potente de Lula não deixa dúvidas. Nossas lágrimas, nossas raivas, nossas indignações não podem ser paralisantes. Elas devem ser a força-motriz de uma práxis política revolucionária, comprometida com as agendas políticas daquelas que são o retrato fiel da classe trabalhadora brasileira: as mulheres negras.

               Portanto, como dizia Luiza Bairros, estejamos prontas, atentas, fortalecidas e juntas!  A morte e a vida de Dona Marisa, de Fátima, de Luiza Bairros, de Márcia Santana, de Saraí e de tantas outras lideranças políticas femininas que dedicaram suas potências a serviço das causas do Partido dos Trabalhadores devem ser nossa luz.

                  A luta nunca nos abandonou e nós não abandonaremos a luta.
                                       Lula resiste, nós resistiremos.
                                                               Sandrali Lula de Campos Bueno

                                             

domingo, 1 de abril de 2018

NOS TRILHOS DA ESQUERDA, DO CENTRO OU DA DIREITA - VOLVER! :

 uma Analise de três candidaturas ao legislativo municipal de mulheres de terreiro no Rio GRANDE DO SUL [1]

                                                                                       Ìyá Sandrali de Ọ̀ṣun [2]

Resumo: Os avanços das ações afirmativas referente às candidaturas de mulheres no poder legislativo são incontestáveis: fruto da luta e conquistas do movimento social na viagem em busca da equidade de gênero e raça em todos os espaços da sociedade brasileira. As mulheres negras de terreiro também tem feito essa viagem. Permitam-me utilizar da forma poética para definir a situação: o trem é o mesmo e embarcamos na mesma estação. A diferença está no lugar que nos tem sido reservado neste trem. Juntas limpamos a estrada e desentortamos os trilhos; juntas escolhemos o destino. Juntas escolhemos a estação e juntas colocamos o combustível; juntas aquecemos a máquina, lubrificamos as peças; juntas damos a partida. Mas ainda não sentamos nos lugares destinados à primeira classe, aliás, ainda não conseguimos romper com este modelo excludente. Estes lugares continuam sendo ocupados por uma minoria e pouca foi a mudança nas poltronas. A cidade coloriu-se com turbantes, saias, colares. Mas não se consegue mesclar, na mesma proporção, os espaços de poder, com ‘as cores’ e os saberes das mulheres negras de terreiro. O poder negro/feminino e a visão das mulheres negras, diante da política, não têm corporeidade. Então, utilizando a visão senso-perceptiva da tradição de matriz africana, pretendo analisar como o binômio racismo-machismo no imaginário coletivo da política resulta no impedimento para mulheres negras de terreiro.
Palavras-chave: Racismo, Mulheres de Terreiro, Política, Feminismo Negro

Deslocando verdades: pelos caminhos e trilhos da tradição afro-brasileira
                 Uma comunicação oral que se utiliza da sensopercepção da tradição de matriz africana como ferramenta para analisar três candidaturas de mulheres negras de terreiro, ao poder legislativo de duas cidades com alto índice de população auto declarada de matriz africana e afro-umbandista, no território sul-rio-grandense, permite-me iniciar saudando o Mensageiro da Comunicação, Bará,  o Senhor do Corpo e dos Caminhos e recorrer ao princípio da oralidade como caminho inicial na encruzilhada de saberes, lugares e agenciamentos de verdades que compõe o 13º Mundos de Mulheres & Fazendo Gênero 11.
De acordo com o lugar por onde me referencio enquanto mulher negra, com saber iniciático na filosofia tradicional de matriz africana e afro-umbandista, Batuque do Rio Grande do Sul, e no povo da tradição yorùbáquando Olódùmarè, O Ser supremo, Senhor da Existência e do Universo criou a Verdade, ele a fez como um grande espelho sagrado entre o òrun e o àiyé  e o confiou aos cuidados de uma filha de Oxum. Todos os dias ela cuidava da Verdade com esmero de quem reconhece a Beleza e o Sagrado que existe em si, na Outra Pessoa e em todos os seres vivos e não-vivos. Um dia, por um descuido, destes que não são conscientes, mas que tem origem no desejo intrínseco de novas possibilidades e descobertas, o espelho se quebrou e espatifou-se em milhares de pedaços, tantos quantos são os seres existentes no Universo. Preocupada, compreendendo que provocara uma mudança, pois, uma vez, quebrado o espelho não teria como reconstituí-lo, dirigiu-se a Olódùmarè, temerosa.  Olódùmarè, na sua Sabedoria Infinita de que o Acerto existe porque o Erro o provoca, lhe disse: Agora a Verdade  dividiu-se em milhares de pedaços e espalhou-se em todos os lugares e para todas as pessoas, isso fará com que cada pessoa diga: eis aqui a Verdade, eu a tenho.
Bàbá conta que seu Bàbá contava que sua Ìyá contava e eu me utilizo do direito sagrado da palavra para dizer que a Verdade foi distribuída por Ọ̀ṣun, a Senhora da Fecundidade, por entender que o Poder da Onipresença e da Onisciência faz parte da conjunção da Energia Feminina e da Energia Masculina para que as pessoas possam nutrir-se da presença e do conhecimento de todos para conquistarem o poder de ‘Si-Próprio’ e o Lugar da Verdade ser aquele que está relacionado com o lugar da vivencia de cada um. Diante disso, quero afirmar que, também, tenho meu pedaço de espelho e se, por algum momento, parecer que esteja falando como sendo dona da verdade toda, que as minhas ancestrais possam me mostrar que sem a verdade de cada um e de cada uma, que comigo partilha esse momento de troca de saberes, transformações, conexões e deslocamentos, em tempos de resistência, a construção da unidade na luta das mulheres torna-se impossível.
Contudo, é preciso reafirmar que enquanto não houver paridade de gênero e equidade racial, em todos os momentos, a luta das mulheres negras por direitos e por bem viver ainda será vista como concessão e não como uma conquista.  

Conectando verdades: Povo de terreiro na viagem em busca da equidade de gênero e raça
                      A sociedade e o estado brasileiro têm uma dívida histórica secular, para com o Povo de Terreiro, sobretudo com as mulheres negras que sustentaram e continuam sustentando,  de forma fascinante, as comunidades religiosas de matriz africana, em contraposição às ações e estratégias que, por mais de quinhentos anos, estão circunscritas no ideário de aculturamento racista e machista que, de forma perversa, destituiu e desconstruiu a ordem e a organização da cosmovisão de um povo cuja dinâmica civilizatória transcende a lógica da subjetividade individual. Assim o é em todo território brasileiro e não seria diferente no Rio Grande do Sul, estado cujo imaginário social construiu uma representação de um lugar com características europeias, habitado por descendentes italianos e alemães numa tentativa de supremacia em relação aos demais grupos étnicos que compõem a formação da população desse estado.
                 A historiografia do Rio Grande do Sul é permeada por temas controversos em relação a participação do negro que transcende à construção identitária do povo sul-rio-grandense. Entretanto, a cada ressignificação da memória, na perspectiva do estudo da história da África e dos africanos e da luta dos negros na diáspora, fica evidente que a dinâmica civilizatória de matiz africana está intrínseca na busca da identidade afro-brasileira e da afirmação do pertencimento construídas a partir da recomposição de valores, que tem como premissa ontológica a preservação da vida. Esse processo recompõe e ressignifica a herança combativa de homens e de mulheres que foram escravizados e serve de referencial às iniciativas pioneiras dos movimentos sociais negros, incidindo na luta por políticas públicas em defesa dos direitos da população afrodescendente como um todo.
                 No ano de 2011, Ano Internacional do Afrodescendente, dignitárias e dignitários dos Povos de Terreiros da cidade de Porto Alegre e de municípios do Estado do Rio Grande do Sul potencializam a Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa no Rio Grande do Sul e entregam uma carta ao governador Tarso Genro, como um ato simbólico de inauguração de um novo patamar nas relações do movimento social com o governo, ressaltando a importância de um diálogo produtivo e efetivo junto ao estado.
                 O Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul tem dado mostras de sua capacidade organizativa, bem como realizado avanços na construção de políticas públicas; a organização das mulheres de terreiro espelha esses avanços, assumindo responsabilidades e tarefas na manutenção dos espaços conquistados, da mesma forma combativa com que suas ancestrais assumiam e desafiavam a escravidão, muitas vezes pagando com a vida pela sua resistência e desafio.
         O racismo e o machismo são estruturantes do sistema colonialista e nos atinge de forma muito brutal. O feminismo ocidental não nos contempla e o machismo nos atinge, indistintamente, e poucos são os recursos que tem se mostrado eficiente em se tratando de protagonismo político, social e econômico que revertam na ocupação do espaço do poder legislativo, ou seja, no lugar de criar leis, lugar onde poder-se-ia contribuir com a vitalidade da força da mulher negra de terreiro, em políticas de combate ao binômio racismo/machismo, principal entrave no transcorrer dessa viagem. Tudo isto, e muito mais, são fios tecidos pelas mulheres de terreiro com alteridade negra e feminina do nosso Estado, sobretudo tendo como força condutora o arcabouço civilizatório presente na memória ancestral e na sabedoria matricentrada, das mulheres que vieram antes e lutaram pela conquista da cidadania, como refere Helena Theodoro,
Ser cidadã negra brasileira é sair da retaguarda para a vanguarda, com todo o potencial herdado da comunidade negra, com toda a espiritualidade e arte de nossas ancestrais – borboletas coloridas, presas em mel estragado, se arrastando pelo mundo, mas plenas de sonhos e visões. (THEODORO, 1995, p.57).
     
Município: Um deslocamento possível na interação de forças criativas   
                  O Município, enquanto espaço entendido como lugar onde as atividades humanas são exercidas numa troca direta no âmbito das relações cotidianas que se conectam com as experiencias e o viver das pessoas, de forma concreta, mediadas por possibilidades e interações que mobilizam forças criativas, potencialmente condutoras de respostas aos esquemas de negociação e de desenvolvimento de oportunidades e garantias de solidariedade, obtenção de saúde, paz e prosperidade,  é, invariavelmente, o espaço onde se expressa a vinculação à arte de aproximação da célula primeira que gera a vida ao pleno desenvolvimento das condições de promover a existência digna desse viver, ou seja, é o lugar onde as pessoas nascem, crescem e deveriam ter as mesmas condições de se desenvolverem integralmente e optarem, ou não, a entrarem em contato com outros lugares para poderem ampliar  sua compreensão das transformações, conexões e deslocamentos dos mundos singulares e das diferenças que consagram o sagrado direito de ser.
 Dito isto, na visão senso perceptiva da matriz africana, diante das conquistas das mulheres, da força ativa do movimento de mulheres negras e dos avanços nas políticas públicas, não haveria qualquer barreira, institucional - ou não - que impedissem as mulheres negras de terreiro, de embarcar nesta viagem ao encontro de uma atuação como parlamentar que represente sua história e trajetória, numa concepção matricentrada, a partir do poder de agir em nome de uma coletividade, cuja religiosidade se anuncia como visão de mundo, como concepção que permeia a existência. No entanto, é justamente neste momento que o binômio racismo-machismo se expressa na sua forma mais violenta e cruel, apontando-lhes estereótipos que afetam suas possibilidades, desejos e motivações para ocupar posições políticas que lhes facilitassem o enfrentamento do mundo branco e patriarcal.

Da escolha dos municípios: constatando verdades na possibilidade de embarque
            O deslocamento do lugar de autoridade civilizatória da tradição de matriz africana para colocar-me no lugar de pesquisadora afirma um método de interdependência entre razão e emoção, entre sentir, perceber, pensar e agir que caracteriza uma concepção de mundo diferenciada da filosofia judaica cristã e da concepção ocidental de análise da realidade, ou seja, como refere Jose Carlos dos Anjos (2008), na concepção filosófica afro-brasileira, a noção de pessoa se contrapõe à noção usual de sujeito político que emana da modernidade política ocidental, pois concepção de pessoa está estritamente vinculada ao modo de enxergar o universo, as individualidades, as relações com os outros e com a natureza numa dimensão sagrada. E é com essa interdependência que pretendo permear o estudo e análise dos dados por mim pesquisados.
Segundo dados do Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística – IBGE, Censo 2010, o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro que mais auto-declara o pertencimento às religiosidades de tradição da matriz africana. Os dados indicam que 315.198 domicílios, mais de 65 mil terreiros espalhados pelo território gaúcho, configuram um cenário diferenciado enquanto territorialidade das comunidades tradicionais de matriz africana e afro umbandistas se comparado com os demais estados brasileiros, podendo suscitar outros estudos, inventários e formulações sobre as relações inter-religiosas no solo sul-rio-grandense.  
Porto Alegre apresenta a maior concentração de domicílios, ocupando o primeiro lugar com 94.571 de domicílios com auto declaração de pertencimento e Pelotas apresenta um escore de 22.178 ficando na quarta posição entre os municípios que apresentam domicílios com auto declaração de pertencimento à tradição de matriz africana e seus desdobramentos de declarações de religiosidades afro-brasileiras.
Além do índice de domicílios autodeclarados de tradição de matriz africana e seus desdobramentos, como Batuque, Umbanda e outras denominações de religiosidades afro brasileiras, a escolha de Porto Alegre e Pelotas como espaço a ser sentido, percebido e pensado enquanto lugar de possibilidades eleitorais para mulheres negras de terreiro, também há que se considerar o índice de população de pessoas negras e pardas. Entre as dez maiores cidades do Rio Grande do Sul, Porto Alegre é a que possui a maior população de negros e pardos: 225.354 pessoas. No interior do estado, Pelotas é o município que apresenta a maior população de negros: 51.567 pessoas. A população total destas cidades é de 1.360.590 e 323.158, respectivamente, ou seja, tratando-se de percentuais, Porto Alegre apresenta um percentual de negros e pardos de 16,5% da população total e Pelotas um percentual 15,9% da população total.

As candidaturas: limpando estrada, desentortando trilhos, já temos o combustível.

O senso comum nos fez acreditar que religião e política não se misturam nem se discute e não era ‘coisa pra mulheres’.  Por muito tempo nossas mais velhas se mantiveram no lugar de acolhedoras, em seus terreiros, recebendo os políticos, - homens brancos - que, em troca de pequenas concessões e promessas de melhorias no espaço do terreiro, usufruíram da confiança e do envolvimento das Mães/Ìyás , em suas candidaturas, apropriando-se do carisma, da liderança e do respeito que mães (e pais) de santo exerciam (e exercem) perante suas comunidades e no entorno, sobretudo pela relação que o terreiro estabelece com a comunidade, ou seja, preservação de princípios civilizatórios amalgamados num processo de reconhecimento do Outro enquanto Força-Ser a serviço da coletividade.

                                A partir da noção de pessoa em conexão com a história, cultura e religiosidade afro-brasileira, atribuí uma dijina a cada uma das candidaturas: Yemowo, Maré e Alupande - e tratei o espaço do pleito eleitoral como um patrimônio imaterialmente sagrado já que, conforme refere a concepção que norteia o pensamento filosófico negro-africano o nome individualiza, situando-o no grupo, mostrando sua origem, sua atividade e sua realidade como pertencente a uma comunidade com a qual estabelece um compromisso que dá sentido à vida em coletividade e isso é sagrado, pois todas as atividades humanas tem um caráter sagrado, principalmente aquelas que emanam do compartilhamento do poder de realização.
 Para formatação do perfil da candidatura fiz  a coleta de informações no portal do Supremo Tribunal Eleitoral e nos sites disponíveis referentes às eleições 2016.
Candidatura Yemowo[3] : Reginete Souza Bispo Òmóriṣá (filha-de-santo), negra, socióloga com especialização em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul -UFRGS. Atua desde o início da década de 80 em movimentos sociais, em direitos humanos, contra o racismo, atuando junto as comunidades quilombolas, especialmente na luta pela regularização fundiária do Quilombo dos Alpes, um dos poucos quilombos que vivencia a tradição de matriz africana enquanto religiosidade; defensora da laicidade do estado, integra o movimento de luta contra a intolerância religiosa e pelo direito à liberdade de culto. Trabalhou na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, atuou como assessora especial no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio Grande do Sul – CEDES; diretora da organização de mulheres negras Akanni - Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e Etnias[4]. Atua junto as comunidades de imigrantes e refugiados, sobretudo os senegaleses e caribenhos. Dirigente partidária, fazendo parte da executiva do partido e já concorreu em três eleições ao legislativo, incluído nível estadual. Casada, tem uma filha e um filho, adolescentes, cursando ensino médio e universitário respectivamente. Mora em Porto Alegre, no bairro Partenon, na periferia da cidade, com uma concentração significativa de população negra onde se constata uma série de situações que requerem intervenções do estado no que se refere às políticas públicas. O bairro também é reduto de várias casas de religião que se caracterizam pela permanência territorial de várias décadas. Candidatura pelo Partido dos Trabalhadores – PT. Coligação PT/PCdoB. Plataforma eleitoral: Vamos construir um mandato para: Combater o racismo, machismo, homofobia, transfobia, e a intolerância religiosa. Criar políticas de proteção, acolhimento e adaptação a imigrantes e refugiados. Atuar na regularização fundiária e preservação dos territórios tradicionais. Construir estratégias solidárias no enfrentamento a violência e ao racismo institucional, responsável pelo genocídio da população negra. Fortalecer políticas de reconhecimento e valorização cultural das etnias.[5]
Nome na urna: Reginete Bispo   Votos: 1199     Resultado da votação: suplente       
         
Candidatura Maré[6]: Nilza Terezinha Marques Valinodo. Ìyá Nilza de Yemanjá, Ìyálóriṣá (mãe-de-santo), setenta e um anos de idade, negra, nível de instrução de ensino médio, líder comunitária, com pertencimento nas comunidades carnavalescas, dirigindo uma organização de ‘baianas independentes’ que desfilam nas escolas de samba de Porto Alegre e em outros municípios; divorciada, mãe e avó, abriga em sua casa, filhas e netos, além de algumas filhas-de-santo, sempre que isso se faz necessário; tem vínculos, de longa data, com lideranças afro-religiosas e relações políticas atuando como apoiadora de candidaturas. Integra a Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde/NúcleoRS. Participou no documentário Cuidar nos Terreiros. Fez parte da Comissão Impulsora de criação do Conselho do Povo de Terreiro e é conselheira, representante do município de Porto Alegre, no Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Mora em Porto Alegre, no bairro Bom Jesus, bairro periférico da cidade com grande número de moradores negros e ‘casas de religião’ com longo histórico de territorialidade no local, sendo considerado no imaginário social um bairro de batuqueiros. Candidatura pelo Partido Verde – PV. Plataforma eleitoral: Mãe Nilza de Yemanjá, a força de uma guerreira. A Oportunidade de Mudança. Propostas: legalização das casas de religião africana e luta pelos direitos do povo de axé. Inclusão social e capacitação para os moradores de periferias da nossa cidade. Elaboração de projetos de oficinas do segmento do carnaval, como forma de incentivar a geração de emprego e renda e fomentar a cadeia produtiva do setor. Assistência e monitoramento a criança e ao adolescente[7].
 Nome na urna: Nilza de Iemanjá   Votos: 219    Resultado da votação: não eleita   

Candidatura Alupandé[8]: Patrícia Peres Pontes, chefe de terreiro de linha cruzada, negra, casada, professora de ensino fundamental, cursando faculdade de Educação, microempreendedora, quarenta e três anos de idade. Iniciada no Batuque por um babalorixá influente na cidade de Porto Alegre, Pai Juarez do Bará. Tem importante pertencimento na linha cruzada (quimbanda), cujo crescimento é notório no Rio Grande do Sul e países do Sul do continente, especialmente, Uruguai e Argentina. Faz parte da associação AFROCONESUL.  Promove eventos festivos de caráter religioso, como por exemplo, o Encontro de Exubandeiros: Personalité. Apresenta um programa de caráter religioso e sócio cultural, A Voz da Cidade, na TV Cidade Pelotas canal 20 da Blue. Mora em Pelotas, no bairro Cruzeiro do Sul, periferia da cidade com população negra significativa e um número, considerado relevante, de centros de religião afro brasileira. Candidata pelo Partido Democratas - DEM, coligação DEM-PTC-PHS. Plataforma eleitoral[9]·: Não encontrada plataforma, nem propostas.  Nome na urna: Patrícia Pontes. Votos: 124. Resultado da votação: Suplente.

Deslocando verdades: O preço moral de uma candidatura de mulher negra de terreiro
         Ser mulher e atuar no campo da política é um desafio gigantesco. Ser mulher, negra, de esquerda, de centro ou de direita atuando na política é um desafio ainda maior, pois os próprios partidos políticos silenciam as suas figuras públicas femininas, negras e de matriz africana e afro-umbandista. Essas características se verificam quando se constata que o deputado federal mais votado, no estado do Rio Grande do Sul, está na contramão de tudo aquilo que o movimento social defende e de toda a política que se entende como necessária para a construção de uma sociedade radicalmente igualitária. Um homem, branco, representante dos setores mais reacionários do estrato social gaúcho. Os números de votos destinados aos homens, com discursos altamente reacionários, exigem que tenhamos uma mudança de postura dentro dos movimentos sociais e dos partidos políticos, sobretudo dos partidos declarados como de esquerda.
          Contudo os partidos políticos, tanto de centro quanto de esquerda, também apresentam  idiossincrasias em seu fazer que reverberam práticas configuradas na arbitrariedade cultural que funda a sociedade brasileira sustentada pelo binômio racismo-machismo  E é neste cruzamento que observa-se uma necessidade de dar-se um giro, uma viravolta para que se reflita sobre a forma que, muitas vezes, são colocados projetos personalistas acima da construção política, do coletivo e das possibilidades concretas de avanço e consolidação daqueles e daquelas que vocalizam as pautas e os anseios da população afro descendente, sobretudo das mulheres negras de terreiro cuja fala não deve ser percebida apenas como meio de expressão e comunicação, pois na filosofia de tradição africana falar é agir.

Considerando verdades: o que nos impede de ocuparmos o lugar no trem do poder legislar
                  O resultado das eleições de 2016, cujo convite ao embarque no trem da livre escolha apontava para #SEUVOTOSUAVOZ[10] numa livre associação do poder da fala representativa e na força da imagem como veículo de propagação de valores, considerando a ética civilizatória do bem comum, causa estranhamento a quem acredita na radicalidade da democracia. Porém, entendo que apenas confirma o fortalecimento de práticas de xenofobia, sexismo e racismo articuladas nos bastidores do poder e submetidos ao senso comum de uma sociedade historicamente construída sob a égide vampiresca da culpa e da falta.
Durante o último processo eleitoral, vivenciei, enquanto coordenadora da campanha de uma das candidaturas, a grande necessidade de construir, cada vez mais, mecanismos e estratégias, a partir dos pressupostos civilizatórios de matriz africana e afro umbandistas, de fortalecimento das figuras públicas femininas e negras que se propõe a serem porta-vozes de ‘Si-mesma’ e de sua comunidade. Contudo essa construção é árdua, pois lida-se com as adversidades e os impactos causados pelo legado da supremacia branca e machista que produziu uma ‘vampirização’ faminta em constante busca de vida saudável para sua sobrevivência.

Considerações finais neste deslocamento que inauguro no Fazendo Gênero
 A  feminilidade negra, não é um conceito que individualiza, não é algo subjetivo. É algo singular- uma singularidade que se expressa a partir do coletivo que ajuda a manter a saúde mental. A feminilidade negra, ‘orimentalmente matricentrada’ é a Força Vital que não se categoriza: se experimenta. A prova de que ela existe é porque eu a sinto como algo que me assemelha à força da outra mulher que está fora de mim e em toda parte da Natureza.
Acredito que muito há para ser estudado e aprofundado diante dos acontecimentos que envolveram as eleições de 2016. Não existem fórmulas prontas do ponto de vista do conhecimento, de técnicas e metodologias conceituadas nos espaços acadêmicos. E concluo essa breve viagem dizendo: antes de existir a Palavra, existia o conhecimento e sua ação; que antes de existir a Escrita, podíamos compreender o que conhecíamos e compartilhar; que antes de existirem as Escolas, existiram e resistem os Terreiros, as Comunidades Tradicionais, as Rodas de Conversa, a Transmissão Oral, a Transmissão Mãe a filho-filha, Pai a filha-filho; que antes, inclusive da Palavra e da transmissão oral ou escrita, existe o Exemplo, a Imitação e a imitação que é construtiva e criativa, que expande o campo da percepção, das sensações e das competências humanas; que antes de existirem as escolas, nos Terreiros, nas Comunidades Tradicionais há a aprendizagem, há transmissão dos conhecimentos, há um fio condutor que transforma, conecta e desloca  todos os saberes.

             Title: On the rails of left, center or right - Back!: analysis of three candidacies to municipal legislature by black terreiro women in Rio Grande do Sul.
Abstract: The advancements of affirmative actions regarding candidacies of women to legislative power are uncountable: result from the struggle and achievements of social movements that search for gender and race equity in every space of Brazilian society. The black terreiro women are also in this search. Allow me to use some poetry to define the situation: the train is the same and we board at the same station. The difference is in the seats that have been booked for us in this train. It is together that we clean the road and fix the rails; together we choose our destination. Together we choose the station and together we fuel; together we warm the machine up; together we grease the parts; together we start the engine. But still we do not take the seats that are reserved for the first class, moreover, we still cannot breakaway from such excluding model. These seats are still taken by a minority and changes regarding them were minimum. The city became colorful with Afro turbans, skirts, necklaces. But we are not able to repeat such mixture, in the same proportion, of the spaces of power and the "colors" and knowledge of black terreiro women. The black/female power and the views on black women do not have corporeity, facing politics. So, through a sense-perceptive view from African matrix traditions, I intend to analyse how the binomial racism-sexism, in the collective politics imaginary, results into a hindrance for black terreiro women.
Keywords: Racism, Sexism, Black Feminism, Politics, Terreiro Women
Referências
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CONSELHO DO POVO DE TERREIRO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Boletim Informativo: Da Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa -2011 ao Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul - 2014. CPTERGS/SE/GG. Porto Alegre, dez. 2014. Disponível no site:http://www.rs.gov.br/conteudo/208964/povo-de-terreiro-entrega-relatorio-de-atividades-ao-governador-tarso-genro.

DOS ANJOS, Jose Carlos Gomes. A Filosofia Política da Religiosidade Afro-brasileira como Patrimônio Cultural Africano. Debates do NER, Porto Alegre, ano 9, n.13 jan/jun. 2008. p. 77-96.
NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
_________. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
______ .  Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africano. Rio de Janeiro: Editora SENAC-Rio, 2005.
______ . Novo Dicionário Banto do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
SILVEIRA, Hendrix. “Não somos filhos sem pais”: história e teologia do Batuque do Rio Grande do Sul. 2014. 134f. Dissertação (Mestrado em Teologia-área de concentração Teologia e História) – Programa de Pós-Graduação em Teologia, Faculdades EST, São Leopoldo.
SOMÉ, Sobonfu. O Espírito da Intimidade: ensinamentos africanos sobre maneiras de se relacionar. 2 ed. São Paulo: Odysseus, 2007.
THEODORO, Helena. Mulher Negra, Arte e Poesia: Leci Brandão. In: SEFFNER, Fernando (org.). Presença Negra no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UE/Porto Alegre,1995. Cadernos Porto&Virgula, 11. p. 56-57.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997.



[1] Comunicação oral apresentada no 13º MUNDO DE MULHERES & FAZENDO GENERO 11.Florianópolis 2017.
[2]Ìyá Sandrali de Ọ̀ṣun é o nome de identidade social/religiosa de Sandrali de Campos Bueno, Ìyálòrìṣà, Autoridade Civilizatória da Tradição de Matriz Africana, Psicóloga, Especialista em Criminologia. Ativista social. Servidora pública. Atualmente Secretária Executiva do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul. Gestão 2014-2018. Porto Alegre, Brasil.
 [3] Nome recebido quando de sua iniciação na tradição de matriz africana, no Ìlé Àṣe Omi Olodo, cujo significado é: aquela cujo poder foi aceito pelos orixás femininos.  Atualmente pertence à comunidade onde militou, nos inícios dos anos 1990, no processo de resistência à remoção da Vila Mirim liderada pela mãe de santo Dorseliria Maria da Silva, Mãe Dorsa de Oxalá (falecida em 2016). Para maior conhecimento desta luta pela territorialidade, Ver: DOS ANJOS. Jose Carlos Gomes. No território da Linha Cruzada: a cosmopolitica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006.
 [4]. AKANNI significa nosso encontro tem poder. https://www.facebook.com/akanni.ong/#
 [5] Fonte: https://www.facebook.com/groups/amigaseamigosdareginete/photos/
 [6] Aqui uma alusão ao ‘seu Maré’, entidade de Linha Cruzada de Mãe Nilzinha que completou 58 anos de manifestação
[7] Fonte: https://www.facebook.com/yalonilzadeyemanja
[8]Aqui fazendo referência à saudação às entidades de linha cruzada (exus) no Rio Grande do Sul.
 [9] Fonte:  eleicoesepolitica.com/vereador2016/vereador/RS/.../25777
[10] http://www.tse.jus.br/imagens/imagens/logo-eleicoes-2016/@@images/9b24cf2f-5260-4e42-bbd1-be5f0a4cbb4d.jpeg

terça-feira, 27 de março de 2018


                                                                            
Comentário sobre o artigo “Clinica Social Mãe Providencia: Enfoque no Aprimoramento da Prática Clínica com Experiência Somática”, de Danúzia Santos Lopes e Jeane Dias Braidy .
                                                                                        Por Ìyá Sandrali de Òsún*
 Comentar o artigo “Clinica Social Mãe Providencia: Enfoque no Aprimoramento da Prática Clínica com Experiência Somática”, de Danúzia Santos Lopes e Jeane Dias Braidy é ir ao encontro de pérolas; pérolas de várias matizes e vários adornos, processadas por uma concha madre translúcida, firme e segura, garantidora da estrutura metodológica de entrelaçamentos de saberes, vivências e resoluções positivas. Pérolas que vão se conectando através do fio do ensino- aprendizagem, no encontro sagrado do compartilhamento e da circularidade do enunciado daquilo que une todos os seres vivos que passam por situações traumáticas: o equilíbrio resiliente dos encontros entre corpo-alma-mente, como eixo propositivo do atendimento clinico a pessoas vítimas de traumas, sejam estes conscientes ou não.
      A experiência compartilhada pelas psicólogas Danúzia e Jeane ao colocarem o Projeto Social Mãe Providencia, em evidencia, abre uma perspectiva de formação em forma de janela para novos horizontes, ou seja, a experiência pessoal, fluindo entre percepções, sensações e ações, constituindo-se em reestruturações que, mais que alternativa de aprimoramento na arte ‘de cuidar do outro cuidando de si’, reforça o compromisso do Ser-Força com a essência sagrada do Ser Natureza, no que se refere ao encontro do processo de compartilhar a prática terapêutica com a experiência senso perceptiva das vulnerabilidades e das potencialidades inerentes ao próprio estado mítico social do nascer-viver-morrer. Perceber-se enquanto Corpo que reage e recompõe-se nada mais é que aprimorar o encontro com a Natureza, com o sagrado , com o ‘agregamento mítico’ de todos os seres vivos, não–vivos, animais, vegetais, minerais, enfim com tudo que existe e com os quais somos afetados e afetamos através do eixo cósmico que nos faz autores de singularidades, conectados por uma Unidade Existencial, na busca do equilíbrio da perfeição absoluta de tornar-se aquilo que se é. Para tal é preciso aprender a utilizar os recursos do corpo e da mente, na interconexão  da Mente que se faz Corpo - do Corpo que se torna Mente. E isso só é possível através do Compartilhar.
            O artigo nos leva a entender e trazer o Mito à cena do aprendizado destes recursos e dos autos recursos como caminho compartilhado ao encontro da cura no processo senso perceptivo do CORPO-ALMA-MENTE nos dando, como retorno, à própria origem do conhecimento e da necessidade intrínseca do SER PESSOA descobrir-se como co-autor da ação criadora da Natureza, evidenciado pelo sistema senso perceptivo da corporeidade como elemento convergente de encontros e desencontros na busca da liberdade de saber-se enquanto ser único, mas conectado a outras unidades. Compartilhar experiências traumáticas, ou não, faz com que se re-aprenda que “olhar para o corpo” deve ser entendido como um exercício cotidiano, pois nem sempre são os grandes traumas os que esfacelam o SOMA. Em geral, o que esfacela e compromete a genética humana são os traumas cotidianos, aqueles invisíveis ou invizibilizados pela violência estruturada na cadeia do medo e da sensação de impotência que gera a crença na não-possibilidade do PODER DE SER FELIZ. _______________________
 * Ìyá Sandrali de Òsún, é o nome mítico social de Sandrali de Campos Bueno, ìyálorisá, dirigente da Comunidade de Tradição de Matriz Africana “Sociedade Afro-brasileira “Ilê Àsé Orisá Yemanjá”, Batuque do Rio Grande do Sul, em Pelotas. Iniciada em 1970, pelo Bàbálorisá Ênio de Òsún Pandá Miuwá. Psicóloga formada pela UNISINOS, em 1984, especialista em Criminologia pela PUCRS, cujo trabalho de conclusão aborda o confinamento como o silencioso poder de punir. Servidora pública há 45 anos. Psicóloga da Fundação de Atendimento Sócio Educativo do Rio Grande do Sul- FASE/RS. Experiência compartilhada no atendimento a adolescentes em conflito com a lei e em situação de vulnerabilidade social e pessoal, desde 1969 tendo vivenciado no corpo e na alma, várias situações de avanços e retrocessos. Foi a primeira mulher a dirigir o então Instituto Central de Menores, no período de 1987 a 1989. Dirigiu o Albergue “Ingá Britta”, destinado ao acolhimento de meninos e meninas em situação de extrema vulnerabilidade social e pessoal. Presidente do Movimento Assistencial de Porto Alegre, extinto MAPA no período de 1992 a 1993 quando assessorou a implantação da política pública de atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de vulnerabilidade social e pessoal no município de Porto Alegre. Foi protagonista e a primeira secretária do Conselho Municipal Contra as Violências e a Todas as Formas de Discriminações, criado em 1993. Militante social em constante movimento tem experiência no trabalho com mulheres vítimas de maus tratos e abusos tanto no âmbito doméstico quanto nas relações de trabalho e convivência social, desde 1988. Atua em defesa dos direitos humanos, na defesa da laicidade do estado e na luta contra a intolerância religiosa e no combate ao racismo institucional, através de ações que afirmam a dignidade existencial do Ser Pessoa enquanto propositor de seu próprio corpo como fazendo parte de um único eixo existencial. Atualmente exerce a função de Secretária executiva do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, única instância com esta característica no país.



Cara Branquitude.



É com pesar que te informo : eu cansei. Tu venceste.
Fechei as portas do meu amor para contigo.
Tu me odeias e eu não sei responder ao teu ódio;
Tu odeias meu saber e também minha ignorância;
Tu odeias o meu desejo e também a minha renúncia;
Tu odeias minha tradição e também minha contemporaneidade;
Tu odeias meu corpo e também minha alma;
Tu odeias minha filha e também meu filho;
Tu odeias  minha mãe e também meu pai;
Tu odeias meu afeto e também meu desafeto;
Tu odeias minha caminhada e também minha parada;
Tu odeias meu emprego e também meu desemprego;
Tu odeias meu sorriso e  também meu choro;
Tu odeias meu apego e também meu desapego;
Tu odeias minha luta e também minha paz;
Tu odeias minha resistência e também minha desistência.
Eu cansei,
Cansei de lidar com tuas sutilezas e contradições;
Cansei de lidar com tuas dicotomias;
Cansei de lidar com tua arrogância acadêmica;
Cansei de lidar com tua indisponibilidade em me escutar;
Cansei de esconder minha dor atrás dos pactos de tuas mentiras.
Portanto de hoje em diante vou fazer minha escolha.
Vou gritar minha dor. Um grito ensurdecedor para que me ouçam.
Vou me desapegar de ti com toda força de minha alma.
Fique com teu pacto egoico, vaidoso e arrogante.
Fique com teu fingimento em querer me ensinar a conviver, sob a tua batuta, a pretensão de conhecer mais de mim que eu mesma; deixe-me lutar com as forças que sempre tive e colocava a teu dispor.
Por ora basta.
Deixa-me ser abatida pelas minhas escolhas sem a tua interferência de sinhozinho e sinhazinha.
Talvez um dia, tu percebas que perdeste pensando que me venceste.
Pois descobrirás que teu ódio é fruto do desamor por ti mesmo que acreditaste na tua mentira de que todos somos iguais.
Descobrirás que a beleza está na diferença e que a saída está nas diferentes portas que se fecharam pra escapar do teu ódio.
Por ora eu cansei de ti,
Cansei de te pedir a mão para caminharmos juntos no combate da maior mazela desse mundo.
Cansei de ser tua irmã rejeitada.
Cansei de esconder minha dor atrás dos pactos de tuas mentiras.
Cansei de ser aquela que entregas para o inimigo.
                                
                                   Àṣẹ o!
                 
                        Ìyá Sandrali de Ọ̀ṣun                                                                                               17/03/2018.